quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O Novo




Por Dielly Miranda de Souza, Enfermeira, Piraí (RJ)
Blog: Uma Outra Lógica

Minha avó contava que sua mãe havia se casado com meu bisavô aos 10 ou 11 anos, quando ainda brincava de bonecas. Seus pais haviam morrido e uma tia cuidava dela, dando-a em casamento para este homem 30 anos mais velho.

Nunca tinha ouvido falar de sexo, mas quando seu marido vinha para o seu lado a noite, tinha que fingir que estava dormindo, agarrada em sua boneca, provavelmente implorando a Deus para que aquele homem não fizesse a coisa ruim que ela sentia que estava para acontecer, mesmo sem saber o que.

Até que um dia, inegável e inevitavelmente aconteceu.

Meu coração fica apertado em saber que estou aqui graças a raptos, estupros, pedofilia e, por consequente, violência. Essa é a minha história até onde posso enxergar, mas sei que muitos outros crimes hediondos foram cometidos até eu estar aqui hoje.

Acho que o amor, em minha genealogia, foi inaugurado em mim. Porque fui praticamente a primeira, desde “Eva”, que pude escolher de alguma forma o meu caminho.

A união entre meu bisavô e minha bisavó, ainda tão criança, não foi criticada por ninguém. Todos sabiam: polícia, sociedade, família. Não existia CREAS, Sentinela, Conselho Tutelar, Vara de Infância, ECA, nada. A essas crianças restava a sorte. Mas era assim que as coisas eram e nada além podia-se esperar.

E em alguns anos, talvez com 14, tinha em seus braços uma outra boneca, agora de verdade para “brincar”. Ter filhos implica algumas passagens obrigatórias… Imagine esta criança vendo sua barriga crescer até desconfiar que estava grávida, depois as dores do parto, a amamentação sem apoio, trouxas de roupa para lavar à mão, comida para fazer e uma casa sob sua responsabilidade.

Queria ter conhecido esta mulher que foi atirada na vida sem qualquer preparo, ingênua, analfabeta, pobre, simples. Sou-lhe tão grata pela minha vida, mas é difícil demais aceitar que minha história foi assim.
Hoje tocar numa criança é inaceitável. Bater, se satisfazer, violentar de qualquer jeito um menor de idade é imoral e ilegal. Todos, senão os agressores, concordam com isto.

Mas somos contra devido a um amadurecimento da sociedade que em muitos aspectos pensa como um só. Ou seja, existem alguns consensos contra algumas barbáries. Infelizmente, não contra todas, porém, enfim, conhecemos mais de perto o sentido da palavra ética.

Em duas ou três gerações, comportamentos comuns foram repensados e isso foi bom. Mas o ser humano possui uma característica que permaneceu: a rejeição ao novo.
Toda informação que vai de encontro aos interesse de uma minoria ou ao conforto da maioria é automaticamente desvalorizada, corrompida, desmoralizada e descartada.

Mudar não é nada fácil, isto é compreensível. Contudo, o que tem acontecido é pior: é a negação de tudo o que contraria conceitos duros e antigos, às vezes, independente do mal que fazem.

Mas a transformação é necessária.Sem ela, eu também teria sido dada a um homem por conveniência familiar e obrigada a manter relações sexuais desde a infância, criar seus filhos e permanecer calada diante da violência física. Seria uma outra pessoa, bem diferente da que sou agora e não haveria como ser melhor.

Minha mente e meu coração estariam destruídos, também crendo que a vida é assim mesmo como todas as mulheres de minha ascendência acreditaram sem questionar.
Ainda bem que as coisas mudam. Mudanças são, quase que por definição, coisas boas.
Por este motivo, por mim e pela minha bisa, não posso aceitar sentada que tudo o que é novo seja ignorado e rejeitado só porque é diferente.

Me comprometi comigo mesma de que analisarei cada informação que chegar até mim, pois nada é por acaso e minha evolução não será passiva. Não tenho tempo a perder.

A humanidade levou muitos milênios para chegar ao ponto de ter consciência e poder de decisão para mudar seu destino. Não posso mais fingir que a vida é um cavalo selvagem sem rédeas.

Não preciso cair para me levantar. Não preciso sofrer para aprender. Não vim a este mundo a passeio. Ainda há muitas coisas para mudar, há muito trabalho a fazer.

Passar por esta vida sem fazer nada é um desperdício que não podemos nos dar o luxo de ter.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Os Anjos Cantam no Morro



 
Relato sobre a atuação da Polícia Militar de Juiz de Fora no Curumim Olavo Costa
através do “Coral Um Novo Tempo”

Por Leandro Barros Ribeiro
Coord. do Curumim Olavo Costa

Muito se discute a respeito de atuações alternativas da Polícia Militar em áreas de vulnerabilidade social, marcadas por grande incidência de violência e criminalidade. Dentre as muitas opiniões existentes, encontramos vertentes mais tradicionalistas, com viés notadamente repressor e punitivo, contudo, observamos também as correntes modernistas, preocupadas com as intervenções da força policial através de ações preventivas e socioeducativas, que visam antever situações conflitantes e de desequilíbrio social, para agirem no sentido de prevenir ou minimizar as consequências negativas provenientes de um convívio com as mazelas socioeconômicas.

Esta ação preventiva da Polícia Militar, principalmente focada para o público infanto-juvenil, seja através de participações em projetos escolares ou em atividades criadas pela própria instituição militar, vem ao encontro das necessidades modernas de aproximar o policial militar das comunidades em que atua, de forma a também integrá-lo neste convívio social e comunitário como um ator co-responsável pela construção de uma sociedade mais humana e mais justa, baseada em relações pacíficas e capazes de promover o desenvolvimento dos seres humanos, principalmente das novas gerações.

A Polícia Militar de Juiz de Fora, mais especificamente o Segundo Batalhão, através da Banda de Música, desenvolve  há um ano, o Projeto “Coral Um Novo Tempo” no Curumim Olavo Costa, atuando junto as suas crianças e adolescentes, com aulas de canto e musicalização. A proposta deste trabalho é mostrar que a força policial pode intervir na comunidade não somente como instância repressiva, mas também como uma alavanca solidária de paz e desenvolvimento. 

Para tal ação, muitos esforços foram feitos junto à alta direção da Polícia Militar em Juiz de Fora, em relação ao recrutamento de voluntários da banda de música para literalmente “tocarem” o projeto e, finalmente, atuações convincentes junto aos educandos do Curumim para conquista de credibilidade.

Como disse Raul Seixas em uma de suas músicas, “sonho que se sonha só é só um sonho, mas sonho que se sonha junto é realidade“, o “Coral Um Novo Tempo”  é uma prova real de que a comunhão de muitos sonhos com ações conscientes pode revolucionar a sociedade em que vivemos.
Os integrantes da banda de música da Polícia Militar, todas as quintas-feiras pela manhã, levam para os educandos do Curumim a
oportunidade de conhecerem mais detalhadamente o mundo da música e propiciam, desta forma, que através das aulas de canto sejam desenvolvidas as habilidades sociais tão importantes para a construção de um repertório de competências capazes de alavancar a vida saudável em sociedade, como empatia, civilidade, autocontrole e expressividade emocional.

A música tem profundos efeitos na alma humana e pode criar estados permanentes de ânimo, suscitando boas idéias e bons pensamentos. Tinham então muita razão os principais filósofos gregos ao darem à música um notável e importante papel na educação e formação dos jovens. Aristóteles dizia que “pelo ritmo e pela melodia nasce uma grande variedade de sentimentos, e que a música pode ajudar na formação do caráter“.

Platão é ainda mais claro, quando no diálogo “REPÚBLICA“, diz que “a maioria das pessoas não percebe que a música tem o poder de mudar o coração dos homens e que assim, pouco a pouco, molda a sua mentalidade. Mudando as mentalidades, a música termina por transformar os costumes“.

Para Platão, a educação musical é muito poderosa porque permite introduzir na alma da criança, desde a mais tenra infância, o amor à beleza e à virtude. A pessoa mais bem educada musicalmente, mais facilmente perceberia a beleza e a harmonia, e como não há amor sem ódio,segundo Platão, ela também odiaria as coisas más.

Fazendo uma analogia com as palavras de Platão, podemos dizer que os policiais voluntários da Banda de Música do Segundo Batalhão de Juiz de Fora, ao atuarem com o Projeto “Coral Um Novo Tempo”, na Vila Olavo Costa, uma área classificada pela Secretaria de Assistência Social como de “especial interesse social,devido a inúmeros problemas decorrentes da vulnerabilidade”, estão, como diz este filósofo, “contribuindo para a proteção, como guardiões, impedindo que os jovens, como anjos, cresçam rodeados de imagens somente de depravação moral, como que a alimentá-los de uma erva má que houvesse nascido aqui e ali, em pequenas quantidades, mas, dia após dia, de modo a introduzirem, sem se aperceber disso, uma enorme fonte de corrupção em suas almas“.

O Coral “Um Novo Tempo”, do Curumim Olavo Costa é uma não aceitação do mal, do vício, do absurdo do crime e da monstruosidade. É um antídoto poético ao que também alertou em poema Alexander Pope: “O vício é um monstro de aspecto tão horrível que basta vê-lo para detestá-lo. Mas olhá-lo por demais, acostuma-nos com seu rosto. Tolerado inicialmente, sem seguida nos dá pena. Por fim…se o abraça“.

Há exatamente um ano, a semente da atitude contra a omissão foi plantada. Semente de um sonho sonhado com os pés bem plantados no chão, como diz César Souza em seu livro “Você é do tamanho dos seus sonhos“. Hoje, começamos a ver os frutos resplandecerem, doces.
As melodias entoadas pelas crianças devem revigorar, nos céus dos deuses, os ouvidos de Aristóteles e Platão. A cada nota devem sorrir, mais uma vez contentes por sua certeza imortal.
 
Podem acreditar.
Os anjos cantam no morro.

NOTA: Sinceros agradecimentos aos policiais militares da Banda de Música da Polícia Militar de Juiz de Fora, guardiões de nossos anjos cantantes: Tenente Garcia, Sargento Willians Martins, Sargento Neulimar e Sargento Paulo Silva.